O SIGNIFICADO DE MISERICÓRDIA NA BÍBLIA
23.11.2017
A
palavra Misericórdia tem origem latina, e é formada pela junção de miserere
“ter compaixão”, e cordis “coração”. “Ter compaixão de coração”, significa ter
a capacidade de sentir aquilo que a outra pessoa sente; aproximar seus
sentimentos dos sentimentos de alguém; ser solidário com as pessoas. Portanto,
a Misericórdia é um sentimento de compaixão, despertado pela
desgraça ou pela miséria alheia. Esse sentimento de ser misericordioso é
atribuído a Deus nas diferentes religiões, incluindo o Cristianismo, o
judaísmo
NO
ANTIGO TESTAMENTO
No
Antigo Testamento as palavras que falam de Misericórdia são: Hesed e Rahªmim.
Hesed,
que significa favor não merecido, afabilidade, benevolência e denota graça
divina e Misericórdia. O termo em hebraico “hesed”, também indica uma profunda
atitude de «bondade». Quando esta disposição se estabelece entre duas pessoas,
estas passam a ser, não apenas benévolas uma para com a outra, mas também
reciprocamente fiéis por força de um compromisso interior.
Hesed,
expressa um presente imerecido e inesperado de graça divina que vai além de
todas as expectativas e categorias humanas. A Misericórdia é, sem dúvida,
a qualidade predominante de Deus para com o ser humano (Êx 34, 6, Sl 86, 15).
Com o povo de Israel, Deus é compassivo, paciente e tolerante, ao ponto em que
todo o bem que acontece com o ser humano é o resultado de Misericórdia de Deus,
que se estende a todos (Jn 4,1-11) e dura para sempre (Sl 136).
Quando
no Antigo Testamento o vocábulo hesed é referido ao Senhor, acontece sempre em
relação com a aliança que Deus fez com Israel. Esta aliança foi da parte de
Deus um dom e uma graça para Israel. Contudo, uma vez que Deus, em coerência
com a Aliança estabelecida, tinha-se comprometido a respeitá-la, hesed
adquiria, em certo sentido, um conteúdo legal. O compromisso “jurídico” da
parte de Deus, deixava de obrigar quando Israel infringia a aliança e não
respeitava as condições da mesma. E era precisamente então que hesed, deixando
de ser uma obrigação jurídica, revelava o seu aspecto mais profundo: tornava-se
manifesto aquilo que fora ao princípio, ou seja, amor que doa, amor mais
potente do que a traição, graça mais forte do que o pecado.
Rahªmim
o matiz do seu significado é um pouco diverso do significado de hesed. Enquanto
hesed acentua as características da fidelidade para consigo mesmo e da
“responsabilidade pelo próprio amor”; rahªmim denota o amor da mãe (rehem= seio
materno). Do vínculo mais profundo e originário da unidade que liga a mãe ao
filho, brota uma particular relação com ele, um amor particular. Deste amor
pode-se dizer que é totalmente gratuito, não fruto de merecimento, e que, sob
este aspecto, constitui uma necessidade interior: é uma exigência do coração.
Sobre este fundo psicológico, rahªmim dá origem a uma gama de sentimentos,
entre os quais a bondade, a ternura, a paciência e a compreensão, florescem
como prontidão para perdoar.
Convém
contextualizar o termo hesed à família de palavras em hebraico que
remete a três raízes: hânan, râham e hâsad. Os
significados destes três termos no Antigo Testamento convergem para a tradução
como “Misericórdia”,
mas devido a riqueza e complexidade semântica aparecem, dependendo do contexto
e tradução como bondade, benignidade, solidariedade, graça, lealdade...
Assim,
começando pelo livro do Êxodo: “O Senhor,
o Senhor, o Deus compassivo e clemente, paciente, misericordioso e fiel, que
conserva a Misericórdia até a milésima geração…” (Ex 34, 6-7a).
Passando
por Oséias, pelo capítulo 16 de Ezequiel, o Cântico dos Cânticos, o livro da
Consolação (Is 54, 5-10 e Is 62, 4-5) “Tua
terra será chamada desposada. Assim teu criador te desposará, assim encontrará
em ti sua alegria”. Misericórdia que encontra na amorosa mãe uma imagem –
como no capítulo 11 do livro de Oséias: “Israel
era ainda criança, e já eu o amava”; ou no capítulo 49 de Isaías: ”O Senhor chamou-me desde o meu nascimento;
ainda no seio de minha mãe, Ele pronunciou o meu nome”; Is 49, 15: Mesmo
que uma mãe se esquece-se do seu filho, nunca me esquecerei de ti. Is 66: “Sereis carregados no colo e acariciados no
regaço”.
Na
Misericórdia do Senhor para com os seus, manifestam-se todos os matizes do
amor: Deus é para eles Pai (Is 63,16), dado que Israel é seu filho primogênito
(Ex 4, 22); ele é também o esposo daquela a quem o Profeta anuncia um nome
novo: “bem-amada” (ruhama), porque será usada Misericórdia para com ela
(Os 2,3). Mesmo quando o Senhor, exasperado pela infidelidade do seu povo,
decide acabar com ele, são ainda a compaixão e o amor generoso para com os seus
que o levam a superar a sua indignação (Os 11,7-9).
E
então, torna-se fácil compreender a razão pela qual os salmistas, ao quererem
cantar ao Senhor os mais sublimes louvores, entoarão hinos ao Deus do amor, da
compaixão, da Misericórdia e da fidelidade (Sl 103). De tudo isso se deduz que
a Misericórdia, além de fazer parte de Deus, é algo que caracteriza a vida de
todo o povo de Israel e de cada um dos seus filhos e filhas: é o conteúdo da
intimidade com o seu Senhor, o conteúdo do seu diálogo com Ele. Precisamente
sob este aspecto, a Misericórdia é apresentada em cada um dos Livros do Antigo
Testamento com uma grande riqueza de expressões.
Deste
modo, a Misericórdia se contrapõe, em certo sentido, à justiça divina; e
revela-se em muitos casos, não só mais potente, mas também mais profunda do que
ela. Já no Antigo Testamento se ensina que, embora a justiça no homem seja
autêntica virtude e em Deus signifique a perfeição transcendente, contudo o
amor é “maior” do que a mesma justiça; e é maior no sentido de que,
relativamente a ela, é primário e fundamental.
A
Misericórdia motiva a prece e fundamenta a confiança do povo de Israel. Adia o
castigo, mitiga-o e até mesmo o suspende, e triunfa libertando o necessitado. A
Misericórdia é o arco extremo que abrange todas as etapas históricas e
estabelece a última: porque a Misericórdia de Deus torna a conversão possível e
a transformação do homem real.
NO NOVO TESTAMENTO
O
termo Misericórdia no Novo Testamento é identificado com o substantivo grego “eleos”. Também é definido com o verbo
grego “eleao”. Tanto o substantivo
como o verbo significam o sentimento que é experimentado no infortúnio que
aflige a outra pessoa e a ação que decorre desse sentimento. Portanto, a Misericórdia de Deus no Novo
Testamento se revela como um amor
compassivo que vai onde há sofrimento e cura todo tipo de males, mas também
revela que é um Deus que perdoa, reconcilia e regenera o homem. Jesus dá
mostras constantes dessa Misericórdia em sentimento e em obras: à multidão (Mc
6,34) aos doentes (Mt 14,4), à viúva (Lc 7,13). Também revela o perfil do Pai
como sendo um Deus rico em Misericórdia (Lc 15,20).
O
verbo “eleein”, no sentido de ter compaixão, ajuda compassiva, piedade, aparece
nos sinópticos nas histórias sobre eventos que destacam a irrupção da
Misericórdia divina em desgraças humanas (Mc 5,19, 10,47,48: Mt 20,30,31 e Lc
18,38,39). Existe o termo em consonância com a “yess” hebraica (bondade), no
Antigo Testamento, que é o comportamento que Deus exige que uma pessoa observe
com outra (Lc 10, 25-37). Em Mateus 5,7; 18, 33, o verbo ”eleeo”, expressa a
Misericórdia que uma pessoa deve sentir em relação a outra.
Os
evangelhos falam sobre a vida de Jesus, uma vida desenvolvida sob o signo da
Misericórdia de Deus que intervém na história da humanidade. A vida de Jesus é
a cumprimento da promessa e da salvação (Mt 1,22), no contexto de uma história
de Compaixão de Deus pela humanidade (Lc 1,50-78). Jesus anuncia Misericórdia
por onde anda, pois Ele é a Misericórdia de Deus que se faz presente no meio do
seu povo. Isso é a grande verdade que os evangelhos anunciam. Em Marcos e
Lucas, essa Misericórdia é expressada pelo anúncio do reinado de Deus que faz
Jesus (Mc 1,1,14). Esta enunciação realizada com sinais que restabelecem a
dignidade das pessoas e eles mostram que Jesus veio para “Anunciar as boas
novas aos pobres e proclamar o ano da graça do Senhor” (Lc 4, 18-21).
Jesus
não só cura os doentes (Mc 2,17; Lc 5:21), também restaura dignidade dos que
são excluídos, por não cumprir com o Parâmetros morais ou religiosos, em seu
tempo, e oferece reconciliação aos necessitados de perdão e compreensão. Isto é
demonstrado pela sua atitude cheia de indulgência e favor dos pecadores, que
acham nele um “amigo” (Lc 5,34), que não tem dúvidas sobre seu coração, apesar
das dúvidas de muitos, chegando até mesmo sentar-se em sua mesa (Lc 5,27-32;
7,36-50; 15,1-2; 19,1-10).
Por
outro lado, Jesus procura com suas palavras comunicar claramente o significado
da Misericórdia de Deus, especialmente através de parábolas que as pessoas
entendem. As chamadas parábolas da Misericórdia (Lc 15,3-20) diz Jesus para
justificar sua compaixão e condescendência com publicanos e pecadores (Lc
15,1-2). As duas primeiras, a da ovelha perdida e o do Dracma que perdeu
(15,3-10), são analogias da alegria que causa a conversão no céu, mesmo que
seja apenas um pecador. Para Jesus, aqueles que não merecem Misericórdia, de
acordo com os fariseus, são comparáveis à ovelha ou ao dracma perdido e
encontrado.
A
terceira mostra como um Filho pródigo e libertino está, ansiosamente, aguardado
pelo seu próprio pai, que aguarda seu retorno e que, quando visto de longe, o
reconhece, enche seu coração de compaixão e corre para abraçá-lo (Lc 15,
11-32). É a imagem mais vívida do amor ilimitado do Pai celestial. Jesus
revela que Deus não mantém a ira contra ele pecador, mas espera pacientemente
por sua volta para casa com os braços abertos. Esta imagem ocupa o centro da
mensagem de Jesus sobre Deus. Para Jesus, Deus é Pai, porque apenas o amor de
pai ou mãe podem explicar o amor incondicional e gratuito de Deus.
O
apóstolo Paulo apresenta Jesus Cristo como rosto da Misericórdia divina:
Cristo, tendo feito tudo semelhante aos irmãos e tendo experimentado em sua
própria carne a dureza do sofrimento humanos (Hb 2,17-18), é “Imagem de Deus
invisível, primogênito de toda a criação” (Cl 1,15; cf 2 Cr 4: 4), o Filho o
unigênito do Pai, o “reflexo de sua glória, expressão do seu ser” (Hb 1,3). O
mistério do "Pai das Misericórdias" (2Cr 1,3; St 5,11), que concedeu
sua piedade a Paulo (1Cr 7.25; 2Cr 4.1; 1Tm 1.13) e cumpriu as promessas todos
os crentes (Mt 5,7; ITim 1,2; 2Tim 1,2; Tit 1,4; 2Jn 3).
CONCLUSÃO
Percebe-se
que nos escritos bíblicos é proclamada a Misericórdia do Senhor por intermédio
de vários eventos e de diferentes formas, assim como são usadas diferentes
palavras que expressam a mesma realidade da Misericórdia de Deus. Embora sejam
somente palavras humanas, mas tendem a convergir num significado teológico,
para expressar o um único conteúdo transcendental, que exprime a riqueza divina
da Misericórdia de Deus e, ao mesmo tempo que a revela, a aproxima do homem sob
aspectos diversos.
Portanto,
a Bíblia encoraja os homens desventurados, sobretudo os que estão oprimidos
pelo pecado, assim como todos os homens que têm aderido à Aliança com Deus, a
fazerem apelo à Misericórdia e permite-lhes contar com ela. Em seguida,
manifesta a necessidade se dar graças e glória a Deus pela Misericórdia, todas
as vezes que ela se tenha manifestado e realizado na vida das pessoas.
Assim
como na pregação dos Profetas, a Misericórdia significa a especial força do
amor, que prevalece sobre o pecado e sobre a infidelidade do povo eleito.
Também hoje o homem é chamado a viver a Misericórdia de Deus quando está
distante do caminho de Deus, longe do Pai, e, portanto, vive uma vida
distorcida de dos valores cristãos, é nesse momento que mais precisa dos
cuidados do Pai amoroso e misericordioso que espera com os braços abertos para
que o homem volte para a casa paterna junto de Deus.
A
Misericórdia divina é a qualidade quase predominante de Deus com relação ao
homem; inclui os aspectos de compaixão, ternura, clemência, piedade, paciência,
tolerância. A rigor, todo benefício de Deus ao homem tem carácter de
Misericórdia, pois não se baseia em direitos ou méritos humanos, mas na própria
essência de Deus.
Para
o Papa Francisco, a Misericórdia não é uma palavra abstrata, mas um rosto para
reconhecer, contemplar e servir. E assim o manifesta na Bula da Misericórdia
com que convoca o Jubileu: “Jesus de Nazaré com a Sua palavra, com os seus
gestos e com toda a Sua pessoa revela a Misericórdia de Deus. N’Ele não há nada
em que falte compaixão”. O Papa anima todos os cristãos a serem misericordiosos
uns com os outros porque “a Misericórdia é a chave que sustenta a vida
da Igreja”. Pois Jesus em “Sua Pessoa não é outra coisa senão Amor, um
amor que se doa e oferece gratuitamente. Os sinais que realiza, sobretudo para
com os pecadores, para com as pessoas pobres, excluídas, doentes e em
sofrimento, levam consigo o distintivo da Misericórdia”.
Bibliografia
Consultada
1 –
A Bíblia do Peregrino.
2 –
Chave Bíblica.
3 –
Harris, R. Laird, Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento.
4 –
Smith, Ralph L., Teologia do Antigo Testamento.
5 –
Gonzáles, Justo L. Diccinario Manual Teológico,
6 –
Martín A. (1969) Teología de la Esperanza, Respuesta a la Angustia Existencia.
7 –
Comentario al Nuevo Testamento, William Barclay. 1999 por CLIE para la versión
española. Publicado originalmente en 1970 y actualizado en 1991 por The Saint
Andrew Press, Escocia.
Elías
Nova Nova
Diplomado
em Teologia – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE | Belo
Horizonte, Brasil (2002)
Licenciatura
Plena em Filosofia e Letras – Universidade de Santo Tomás de Aquino | Bogotá,
Colômbia (1996)
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